quinta-feira

Seis

Ela tinha cabelos bem curtos e crespos e se chamava Rosi. Era miúda, mesmo na minha recordação e para os meus olhos de criança. Ela cuidava da gente, de mim e da minha irmã, e eu gostava dela porque me deixava fazer bolos, mesmo eu sendo tão pequena e não entendendo nada de cozinha. Gostava dela também porque fazia pipoca em algumas tardes, que naquela época passavam vagarosas. O apartamento vazio da ausência dos pais pontilhado pelo som da TV, pela campainha tocada por algum amiguinho do prédio, pela pipoca estourando a nossa gula. Rosi parecia próxima de nós. Um dia chegou preocupada, que o irmão tinha sumido. Eu não entendia o que era sumir, como se podia sumir? Só ela sabia o que significava sumir assim. Pediu licença para usar o telefone e perguntar em hospitais e em outro lugar que eu não conhecia, o necrotério; algum desses lugares encontrara o irmão? tinham visto chegar alguém como ele? Naquele dia, porém, nada. Rosi veio e foi embora, os gestos abafados, tentando não pensar em voz alta o que a experiência lhe sugeria. No dia seguinte voltou, ainda desorientada. Até que no meio da tarde o telefone tocou e era sua mãe avisando que o irmão tinha sido encontrado, morto, numa das ruas do bairro onde moravam. Rosi não gritou ou gemeu ou chorou. Rosi não fez nem um aaah.. Comentários breves e resignados, pareceu agradecer que ao menos haveria corpo a velar. Eu, no entanto, muito espantada frente a esse despenhadeiro recém-aberto: aos seis anos, aprendendo que a vida de uns não vale como a de outros e que a morte, indizível, também pode ser banal. Rosi, subitamente, vista em toda a distância que guardava em relação a nós. Vai ver por isso ela ficou pequena na minha lembrança - não importa quanto tempo passe, vista sempre àquela distância, o abismo entre nós.

quarta-feira

Cinco

- Sabe, já faz cinco anos que ela morreu? Cinco anos inteiros. Passou tão rápido e ao mesmo tempo tão devagar. Cada dia sem ela um imenso deserto a percorrer; mas então tem os filhos para cuidar, as contas para pagar, a casa para arrumar e de fazer-em-fazer a vida vai passando...Como passaram os quinze anos que a gente viveu junto, dividindo a vida mas também deixando a vida correr...Talvez por isso, talvez porque a dor foi tanta, eu me lembre de maneira muito mais vívida dos últimos três meses dela. Quando descobrimos a doença, estava tudo tão tomado que não tinha nada a fazer, então ela não teve escolha, a não ser continuar viva. Digo isso assim, tranqüilo, mas você por favor não se impressione, que ninguém foi herói: a gente chorou, sentiu raiva, ódio mesmo, desacreditou, desesperou. Aí resolveu aproveitar o tempo que restava. Como ela estava doente, não deu para cumprir as promessas de viagens e descansos, mas ambos sabíamos que a promessa era mesmo de atenção e falta-de-pressa, então fomos ao parque, ao teatro, lemos livros juntos, assistimos filmes, prolongamos os cafés-da-manhã e os jantares. Era a minha vida em suspenso, e a dela nunca tão presente. Mesmo assim, a gente conseguiu se encontrar à meio caminho e ficar junto, pelo menos um pouquinho. Namorados. No finzinho, ela já não conseguia sair da cama, então eu ficava ali ao lado dela, também o dia todo de pijama, como se sempre fosse domingo. Eu ficava ali, alternando cafunés e a massagem nos pés, que ela adorava: me pedia todas as noites, desde antes de nos casarmos...Eu só fingia a massagem, porque o que tentava mesmo, desesperadamente, era esquentar seus pés gelados...Quando ela morreu, era isso que eu estava fazendo: massagem nos seus pés esguios e frios. Dói muito, dói todos os dias a falta que ela me faz. E já faz cinco anos. Só faz cinco anos.