sábado

Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.

(Mário Quintana)

sexta-feira

Seis

Mais um dia que começava, e ela resistindo a deixar a ansiedade dominar.
Depois do almoço, uma moqueca farta em coentro, pimenta e leite de coco fresco, deitou na cama e ficou em silêncio. Sem dormir.
Só deitada, sentindo o movimento da maré enchendo. Não sabia, mas pressentia. Aquele era o dia em que suas vidas iriam mudar.
Pensou no marido, em quanto o amava, se conseguiriam adaptar-se à vida nova. Pensou em sua mãe e em sua avó, e em suas tias e suas bisavós, e nas mulheres que - desde o início dos tempos - abrigavam tantos mistérios dentro de si e davam a luz somente ao mais óbvio e milagroso deles. Pensou tantas coisas e em nada, ao mesmo tempo, que até escutou o "ploct" de algum lugar dentro dela: a decisão do filho em se dar a conhecer; o estalo da represa começando a abrir; o ponto de virada do carrinho e o imenso vazio da montanha-russa abaixo. Sorriu, feliz. Inteira, mergulhada em medo e mel.

quinta-feira

Cinco

O agito do dia anterior lhe obrigara a dormir até mais tarde e tornara lento o andamento do dia. Dez anos entre o acordar e o ir dormir. Cem anos entre o café e o jantar. Mil anos entre o nascer do dia e o despertar da noite. Uma sabedoria ancestral lhe ensinava a aquietar-se.

quarta-feira

Quatro

Acordou com vontade de arrumar a casa. Mal terminou o café e começou: limpar os móveis, aspirar o chão, lavar as cortinas, consertar as variadas coisinhas adiadas, passar pano úmido. A barriga nem pesava enquanto ela punha tudo em ordem, abrindo espaço para aquele ou aquela que iria chegar. Em breve, sentiu.

terça-feira

Três

O calor intenso a deixava cansada. Tinha vontade de estar o tempo todo sem as roupas, deixando à mostra a imensidão da barriga e os peitos, sempre em mal contida explosão. A excitação da proximidade do momento-quando (mesmo que soubesse que ele podia demorar).
Os banhos eram uma salvação. A água fresca escorrendo, acompanhando os contornos de sua figura sem quinas.

segunda-feira

Dois

Já não atendia mais ao telefone. Não queria ouvir as insistentes perguntas sobre o fato de que o bebê não nascera. Ainda? perguntavam os amigos, surpresos. Como se ela estivesse ansiosa para deixar de estar grávida; como se carregar uma vida fosse um sacrifício mal suportado. Ela porém não tinha pressa - ouvia a sabedoria da falecida avó, amparando sua espera: "cada coisa a seu tempo". E, simples assim, confiava que chegaria a boa hora.

domingo

Um

Acordou de madrugada com os soluços do filho - a barriga pulando ritmada. Acarinhou a barriga e cantou, baixinho para não acordar o marido, suavemente acalmando o serzinho saltitante.
Fechou os olhos, feliz desse cuidado materno que, dado ao filho, também lhe confortava.

sábado

Zero

DPP. Data Provável de Parto. Essa era uma sigla que rapidamente se somara ao seu vocabulário, tão logo se descobriu grávida. A  DPP era calculada a partir da DUM - Data da Última Menstruação - e consistia em horizonte, do qual se aproximava na contagem das semanas, dos quilos ganhos e dos centímetros entre o pé da barriga e o umbigo. A DPP estava muito distante, mas de repente já era hoje; a data da carteira de gestante coincidindo com a do calendário. Quarenta semanas depois da alquimia donde lhe brotara o filho que agora se apertava dentro dela.

sexta-feira

Plotino dice: hay tres tiempos, y los tres son el presente. Uno es el presente actual, el momento en que hablo. Es decir, el momento en que hablé, porque ya ese momento pertenece al pasado. Y luego tenemos el otro, que es el presente del pasado, que se llama memoria. Y el otro, el presente del porvenir, que viene a ser lo que imaginan nuestra esperanza o nuestro miedo.
Jorge Luis Borges, "El Tiempo", 23 de junio de 1978.

quarta-feira

Três

Acordou antes mesmo que o sol aparecesse e resolveu cumprir a agenda.
Colocou na mala o roupão, a  toalha, a necessaire plena de cheiros e suavidades e foi nadar. A piscina verde e ondulando as braçadas dos outros nadadores.
Mergulhou. Era boa a sensação de estar mergulhada em si mesma. O único barulho era o da água, esparramando-se, e os dos braços em seu ir e vir contínuos.
Foi ao trabalho, almoçou  com colegas, sem nem mesmo contar a eles de tudo que recentemente lhe acontecera. Ela quase ia se esquecendo, como se - ao decidir continuar - a vida continuasse.
Às quatro da tarde o telefone tocou e era a amiga, zelosa, tateando seu humor, convidando-a para um jantar. Disse sim, abandonando-se à correnteza.
Em casa, o ritual do banho, os cabelos úmidos, os brincos e as sandálias. Até a campainha tocar. Sem pressa, caminhou até a sala e então abriu a porta para encontrar os olhos doces da amiga e deixar-se abraçar, cristal frágil, e chorar mansinho a dor da falta e a alegria do aconchego.
Acabadas as lágrimas, tomou a mão da amiga ao descer as escadas e suspirou alegre ao vê-la, ao tê-la perto, ali em pé ao lado do carro, gentilmente abrindo-lhe a porta.

terça-feira

Dois

Já passava das onze quando conseguiu abrir os olhos - ainda trincados de chorar. O primeiro pensamento consciente foi a lembrança de estar sozinha na cama. No apartamento. No mundo?
Era segunda-feira e ela se resguardava do mundo que corria lá fora. Um feriado só seu, marcando a ruptura com tudo o que veio antes; para protegê-la do olhar compungido dos outros.
Suspirou fundo até acordar o silêncio e só então se levantou. Lentamente, escovou os dentes, fez ovos mexidos, torradas quentes, suco de laranja, café com leite bem docinho. E também pão de queijo, resgatou as geléias, preparou salada de frutas. Sentou-se à mesa, ainda de camisola, ligou a música e ficou ali por horas, imaginando o que a vida seria dali por diante. Saboreando o doce-amargo do passado; antecipando o agridoce do futuro.

segunda-feira

Um

A porta tinha se fechado. Clanc, sem violência. Como ele fazia todos os dias, pela manhã, pronto para o trabalho de maleta pendurada e xícara de café na mão direita - equilibrista.
Mas hoje era domingo e sua saída, definitiva. Ele fora para não voltar. A porta, afinal, fechada, como antes as caixas e as malas e, antes ainda, as mãos e as bocas.
Tudo mudara tão lentamente que, quando notaram, a porta já estava fechada e o tempo de encontro se perdera. E então ele foi embora, para nunca mais, e ela ficou ali, para sempre. A dor fina e insistente dividindo o corpo ao meio enquanto trancava a porta. Sozinha, no apartamento enlutado. A solidão das coisas fadadas a ficar para trás.