quarta-feira

Dezessete

De novo a urgência de procurar notícias dele. Saber se está bem. Se está vivo. A ansiedade de não-saber e a ansiedade de descobrir montadas no coração aos galopes, no telefone à mão, na conversa com os amigos em comum. Mas não enuncia a pergunta. Não completa a ligação. Não inicia o passo definitivo.

terça-feira

Dezesseis

As noites também trazem os sonhos. E os sonhos, a mistura dos tempos. O passado, tempo de descoberta e presença. O futuro, tempo de encontro. O presente, tempo de mãos dadas, roçar de lábios e abraços intensos. Que só fazem aumentar o desamparo do despertar.
Como pode ser a saudade do quem não foi? E nem seria?

segunda-feira

Quinze

As noites trazem um pouco de alívio - é quando a dor pode transbordar a pele. No escuro, o marido não verá o seu rosto transtornado pela ideia de que o outro está morto. É pouco, mas lhe traz algum alento.

domingo

Quatorze

Será que ela o estava matando? Desfazendo por dentro os laços que os ligavam, feito fio que a gente enrosca no trinco da porta e desfaz em novelo o que um dia foi trama e abrigo? Será que crer que um dos seus maiores medos tivesse se tornado real também era esperar que, ao realizar-se, o encanto se quebrasse e ela finalmente pudesse esquecê-lo?
Então por que ao invés de esquecido, ele passasse a doer tanto dentro dela?

sábado

Treze

Frágil em sua humanidade, caminhava pela cidade. De casa para o trabalho, do trabalho para a escola ou a academia, de volta para casa... Oco por dentro. Ecoando o grito que logrou abafar. Pelo "deserto de almas", como no conto do autor preferido, ela caminhava. Mas estava só: o outro no qual podia se reconhecer e, quem sabe, encontrar alguma salvação, não estava em lugar algum.

sexta-feira

Doze

Como podia ser que a falta dele abrisse aquele descampado dentro dela, restaurando a solidão absoluta do nascer e do morrer?

quinta-feira

Onze

Demorou a entender que a dor não era de viuvez, mas de orfandade. Era dor de desamparo, como se a fragilidade das regras que governavam o mundo se rompessem sem mais e a lançassem em meio à arenosa tempestade. Ao desaparecer, ele levara uma parte da ordem do mundo. A parte boa, das coincidências e das sincronias, jogos de encaixes perfeitos. A parte doce, de ilusão de proteção. Ao desaparecer, ele estourara a bolha de sabão na qual ela se abrigava.

quarta-feira

Dez

Ainda assim, a lembrança dele vinha pesada feito sustentar a alça de um caixão. Cortejo lento, quase como se o cemitério fosse um labirinto. Ela estava se perdendo, sem saber por onde ir, nem se seus sentimentos eram confiáveis. Ao procurar uma saída, só encontrava a si mesma, refletida num espelho distorcido. Ilusão. Miragem. Estaria louca?

terça-feira

Nove

Podia ser que a impressão de que ele houvesse morrido fosse ilusionismo mental para puni-lo por não amá-la, por sumir, por escrever cartas com pontos sempre definitivos e finais. O fio cortara-se há muito e podia ser que sua suposta intuição nada mais fosse que a constatação brusca dessa realidade. Era uma boa solução - a prevenia de ter que ligar e o prevenia de morrer. Era, realmente, uma boa solução.

segunda-feira

Oito

Cheia de pressentimentos, estremecia quando o telefone tocava. A amiga, sempre prática, recomendando ligar e acabar com a dúvida, quase tão insuportável quanto a própria morte. Resistia, no entanto. Resistia à sua própria loucura, afinal não tinha motivo nenhum para dá-lo como morto, a não ser o inesperado rompimento do fio que a ligava a ele e a urgência de gritar seu nome, lá mesmo, em meio à rua lotada das cinco horas da tarde.

domingo

Sete

Acordou às lágrimas. No seu sonho, a sensação dos últimos dias se tornara real: ela estava no velório, vestida de preto, o rosto transtornado. O corpo dele naquele berço às avessas, em desamparo gelado.
Ela não tinha o direito de estar ali, viúva postiça, de um marido que não era o seu. Chorava, porém, o rombo no peito.
Pelo menos no sonho a dor não tinha medida ou lei.

sábado

Seis

O dia azul de inverno secava os olhos e as mãos. Ela caminhava como quem enfrenta uma tempestade, arrastando-se pesada. Doía. Faltava ar.
A possível morte ressuscitara a memória de toda a história que viveram: o encontro; os desencontros. O instante em que espiou pela janela da eternidade e o instante em que o que era vidro se quebrou. Era frágil o amor, no fim das contas. Frágil como coisa viva.

sexta-feira

Cinco

Ainda era em sobressalto que se lembrava da certeza que a atingira naquele dia. Dois dos seus maiores medos: que ele morresse, que ela não soubesse. Soltos no mundo, sem laços, já era quase como se não existissem um para o outro. Mas, para além do ódio, havia conforto em saber que caminhavam sobre um chão comum e que poderia haver encruzilhadas.

quinta-feira

Quatro

O moço no fundo da sala, seria ele? É a mesma boca, o mesmo corte de cabelo.
E aquele outro, de costas, atravessando a rua? Não será ele? O mesmo jeito de se vestir, o mesmo tom da pele.
Se ela ligasse, ele atenderia? E, se não atendesse, seria para nunca mais?

quarta-feira

Três

Ainda o ódio. A casquinha arrancada à unha e a falta de tê-lo por perto latejando. Se eles tivessem brigado, talvez fosse mais fácil. Se tivessem ficado juntos até o amor aguar e tornar-se insosso, insípido e inodoro. Mas o amor não aguara coisa alguma, estavam ali ao alcance da memória o cheiro, o gosto e a textura da pele do outro. O fim não acontecera, a não ser que tinha acontecido.
Por enquanto, em seu saber ignorante, ele não morrera. A não ser que houvesse morrido.

terça-feira

Dois

Indecisa, não queria ligar ou escrever. Tanto tempo sem dar notícias, era estranho ligar para checar se estava bem. Se estava vivo.Também não ligava porque, naquele instante exato, o odiava intensamente: por seu silêncio, por sua ausência. Por não amá-la.

segunda-feira

Um

Não o via há alguns anos e a falta que ele fazia já tinha casquinha bem-feita, mesmo que nunca chegasse a cicatrizar de todo. Por isso, foi em sobressalto que sentiu, sem motivo ou explicação, aquele "ploct" por dentro. Fim de tarde, no meio da rua, cercada de uma porção de gente que ia e vinha, e o fio solto e vivo ricocheteando nos cantos dela. Ele estava morto, teve certeza. E tudo ficou árido e vazio.