terça-feira

Essa menina...

"Tive a péssima idéia de contar os dias, as noites, os anos e, agora, não consigo mais perder a conta. É como se a gente fosse um a cada instante e que esse um ficasse largado no tempo, à medida em que o tempo passasse. Enquanto vivo, vou largando rastros de mim por instantes.  O tempo não me deixa voltar ou reaver aquilo que eu fui, mesmo que eu tenha sido apenas eu mesma, e ninguém mais que isso. Será que o tempo só anda para frente? Será que em direção ao futuro, eu só posso andar de costas, olhando as pegadas que larguei para trás? E se virássemos de frente, o passado continuaria sendo essa cauda que arrastamos pelo caminho, enquanto andamos cegos em direção ao futuro? Mas não consigo enxergar a longa distância; só quando me aproximo o máximo possível do instante, quando piso nele, quando o instante é" (Rita Apoena).

segunda-feira

"Agora está claro e evidente para mim que o futuro e o passado não existem, e que não é exato falar de três tempos - passado, presente e futuro. Seria talvez mais justo dizer que os tempos são três, isto é, o presente dos fatos passados, o presente dos fatos presentes e o presente dos fatos futuros. E estes três tempos estão na mente e não os vejo em outro lugar. O presente do passado é a memória. O presente do presente é a visão. O presente do futuro é a espera". (Santo Agostinho, Confissões).

Trinta e seis

Ao fechar os olhos, abrira as comportas e a decisão mansa e fresca pôde, enfim, escorrer sem susto. Fruta madura e rica em sumo, tão palpável que ela podia quase tocar - regozijando-se, inteiramente mergulhada naquelas águas recém-descobertas. Do deserto, sobrara apenas o chão arenoso, fundo de rio, a lembrar os pés dos caminhos já percorridos.

domingo

Trinta e cinco

Fechou os olhos por um instante, atenta a ouvir o que lhe ia por dentro. Para sua surpresa, sem tantos suportes - os filhos, a casa, a vida em comum - a decisão corria caudalosa por suas veias. Doce, fresca e úmida em meio à correnteza, nem era frágil a decisão, mas inteira. Quando abriu os olhos, pela primeira vez em tanto tempo, sorria de um sorriso sem sombras. Sentiu a vida amaciar em seda. Tão subitamente quanto o susto que a havia lançado ao deserto, podia enfim molhar os lábios. Os olhos. As mãos.

sábado

Trinta e quatro

O abismo com o qual flertava era tão mais fundo que a enorme distância que persistia dentro dela? A distância entre a vida que ela vislumbrara possível ao encontrar o outro e as sucessivas mortes cotidianas? A distância que ia da luminosidade do encontro às milhares pequenas noites dos desencontros - vagalumes às avessas, manchando o dia ensolarado que o outro lhe cavara por dentro?

sexta-feira

Trinta e três

Paralisada. Como se ainda estivesse encostada ao batente da porta, os olhos secos e lúcidos. O que estaria deixando para trás? O que encontraria à frente? Certamente não seria o outro, distante como sempre. Vivo, por certo, mas tão inacessível como antes. Ela sabia que o passo à frente era na direçao do abismo: vazio. Pedra nua. Solidão.

quinta-feira

Trinta e dois

Mas e se o gosto de areia fosse apenas resquício da tempestade? E se o sumo da vida estivesse ali, escondido sob os espinhos, inacessível somente porque ela se esquecera como encontrá-lo?

quarta-feira

Trinta e um

Ficar não fora decisão. Ficar era o hábito do deserto - o gosto de areia estragando o sabor da vida polpuda e úmida.

terça-feira

Trinta

Lavou o rosto, acordando a noite insone. Olhou-se no espelho e o que viu foi: abismo. Na fundura dos olhos, no roxo das olheiras, no ressecado dos lábios. Odiou-se sem indulto - pelo persistente desejo de alegria, pela armadilha em que se deixara apanhar, pela impossibilidade de decidir.

segunda-feira

Vinte e nove

A luz insuportável do dia; o frio insuportável da noite. Por dentro dela, tudo ardia em chama alta. Doía. Crepitava. O calor ressecando a esperança até o ponto do estalo.

domingo

Vinte e oito

A coragem morreu no umbral da porta - a mala numa das mãos enquanto a outra se ancorava firme no batente. Olhou para trás, salgando o doce recém-redescoberto e estacou. Após o desejado sopro que parecia tê-la movido adiante, parada sem brisa nem motor. A sede dos náufragos abrindo feridas no que até há um segundo era umidade e mel.

sábado

Vinte e sete

Humana também, sentiu enquanto fechava as malas. Humana e sujeita a fracassos, decisões equivocadas e cegueiras.
Não importava agora: só importava partir.

sexta-feira

Vinte e seis

Todas as intensidades de volta, revolvendo terra e húmus dentro dela. Tão ampla. Viva, afinal.

quinta-feira

Vinte e cinco

A voz dele do outro lado da linha. Vivo, afinal. Desligou o telefone e chorou por horas - feito coco seco que de repente rachasse e minasse a água doce e rara. Vivo, afinal, repetiu. Como se de novo o encontrasse pela primeira vez - descoberta, repouso. Angelical proteção.

quarta-feira

Vinte e quatro

Respirou fundo, uma, duas, cem vezes. Não era a iminência da ligação a se completar que lhe pesava. Era a fragilidade da decisão que tomara. Tomara? Não sabia ao certo.
Tinha se cansado de carregar a morte por dentro. Mesmo a possibilidade de dor parecia melhor que a secura das últimas semanas.

terça-feira

Vinte e três

Era ela que arriscava ter morrido sem aviso? O deserto por dentro, a secura dos gestos e sentires, as fecundações difíceis e farpadas. A recusa da esperança na vida. A imobilidade mesmo em meio à tempestade. Ele podia estar morto, doeu-se, aflita. Então por que não ligava logo e acabava com a dúvida?

segunda-feira

Vinte e dois

Saber se estava morto ou vivo só fazia importância se ela decidisse. Se pusesse os pés nus na areia quente, se encontrasse coragem pra ir ao encontro do duvidoso oásis. Se rasgasse dentro de si umidade para iluminar os olhos.

domingo

Vinte e um

Porque vivo ou morto, ele era sempre miragem. Vivo ou morto, a distância parecia a mesma.
Mas isso era bobagem, ela sabia. Se ele estivesse morto, a distância era de responsabilidade da morte, do destino, do curso inelutável das coisas. Ou até de deus. Se ele estivesse morto, ela havia sido abandonada. Ela podia mesmo se revoltar.
Mas se estivesse vivo, a responsabilidade da distância era somente deles; era dela.

sábado

Vinte

Imaginá-lo morto inaugurara aquela tempestade de areia por dentro dela. Descobri-lo vivo não deveria dar início à calmaria? Não devia aliviar as ranhuras que ardiam e sangravam por todos os seus cantos?
Mas se descobri-lo vivo era encontrar o espelho d'água em meio ao deserto por onde caminhava, era também deparar-se com sua covardia. Era trocar a consciência da secura pela miragem da fonte.

sexta-feira

Dezenove

Se quando era a hora, as pernas haviam falhado, por que agora seria possível fazer avançar o passo? Se ele estivesse morto realmente, de que valeria caminhar em sua direção? De que adiantaria ligar? De que adiantaria saber como ou quando?

quinta-feira

Dezoito

Por dentro, tudo é aridez e aspereza.Como se a água entalasse na garganta e aumentasse a sede que devia aplacar. Ou a sede é que é de outra coisa e não pode nunca ser amansada.

quarta-feira

Dezessete

De novo a urgência de procurar notícias dele. Saber se está bem. Se está vivo. A ansiedade de não-saber e a ansiedade de descobrir montadas no coração aos galopes, no telefone à mão, na conversa com os amigos em comum. Mas não enuncia a pergunta. Não completa a ligação. Não inicia o passo definitivo.

terça-feira

Dezesseis

As noites também trazem os sonhos. E os sonhos, a mistura dos tempos. O passado, tempo de descoberta e presença. O futuro, tempo de encontro. O presente, tempo de mãos dadas, roçar de lábios e abraços intensos. Que só fazem aumentar o desamparo do despertar.
Como pode ser a saudade do quem não foi? E nem seria?

segunda-feira

Quinze

As noites trazem um pouco de alívio - é quando a dor pode transbordar a pele. No escuro, o marido não verá o seu rosto transtornado pela ideia de que o outro está morto. É pouco, mas lhe traz algum alento.

domingo

Quatorze

Será que ela o estava matando? Desfazendo por dentro os laços que os ligavam, feito fio que a gente enrosca no trinco da porta e desfaz em novelo o que um dia foi trama e abrigo? Será que crer que um dos seus maiores medos tivesse se tornado real também era esperar que, ao realizar-se, o encanto se quebrasse e ela finalmente pudesse esquecê-lo?
Então por que ao invés de esquecido, ele passasse a doer tanto dentro dela?

sábado

Treze

Frágil em sua humanidade, caminhava pela cidade. De casa para o trabalho, do trabalho para a escola ou a academia, de volta para casa... Oco por dentro. Ecoando o grito que logrou abafar. Pelo "deserto de almas", como no conto do autor preferido, ela caminhava. Mas estava só: o outro no qual podia se reconhecer e, quem sabe, encontrar alguma salvação, não estava em lugar algum.

sexta-feira

Doze

Como podia ser que a falta dele abrisse aquele descampado dentro dela, restaurando a solidão absoluta do nascer e do morrer?

quinta-feira

Onze

Demorou a entender que a dor não era de viuvez, mas de orfandade. Era dor de desamparo, como se a fragilidade das regras que governavam o mundo se rompessem sem mais e a lançassem em meio à arenosa tempestade. Ao desaparecer, ele levara uma parte da ordem do mundo. A parte boa, das coincidências e das sincronias, jogos de encaixes perfeitos. A parte doce, de ilusão de proteção. Ao desaparecer, ele estourara a bolha de sabão na qual ela se abrigava.

quarta-feira

Dez

Ainda assim, a lembrança dele vinha pesada feito sustentar a alça de um caixão. Cortejo lento, quase como se o cemitério fosse um labirinto. Ela estava se perdendo, sem saber por onde ir, nem se seus sentimentos eram confiáveis. Ao procurar uma saída, só encontrava a si mesma, refletida num espelho distorcido. Ilusão. Miragem. Estaria louca?

terça-feira

Nove

Podia ser que a impressão de que ele houvesse morrido fosse ilusionismo mental para puni-lo por não amá-la, por sumir, por escrever cartas com pontos sempre definitivos e finais. O fio cortara-se há muito e podia ser que sua suposta intuição nada mais fosse que a constatação brusca dessa realidade. Era uma boa solução - a prevenia de ter que ligar e o prevenia de morrer. Era, realmente, uma boa solução.

segunda-feira

Oito

Cheia de pressentimentos, estremecia quando o telefone tocava. A amiga, sempre prática, recomendando ligar e acabar com a dúvida, quase tão insuportável quanto a própria morte. Resistia, no entanto. Resistia à sua própria loucura, afinal não tinha motivo nenhum para dá-lo como morto, a não ser o inesperado rompimento do fio que a ligava a ele e a urgência de gritar seu nome, lá mesmo, em meio à rua lotada das cinco horas da tarde.

domingo

Sete

Acordou às lágrimas. No seu sonho, a sensação dos últimos dias se tornara real: ela estava no velório, vestida de preto, o rosto transtornado. O corpo dele naquele berço às avessas, em desamparo gelado.
Ela não tinha o direito de estar ali, viúva postiça, de um marido que não era o seu. Chorava, porém, o rombo no peito.
Pelo menos no sonho a dor não tinha medida ou lei.

sábado

Seis

O dia azul de inverno secava os olhos e as mãos. Ela caminhava como quem enfrenta uma tempestade, arrastando-se pesada. Doía. Faltava ar.
A possível morte ressuscitara a memória de toda a história que viveram: o encontro; os desencontros. O instante em que espiou pela janela da eternidade e o instante em que o que era vidro se quebrou. Era frágil o amor, no fim das contas. Frágil como coisa viva.

sexta-feira

Cinco

Ainda era em sobressalto que se lembrava da certeza que a atingira naquele dia. Dois dos seus maiores medos: que ele morresse, que ela não soubesse. Soltos no mundo, sem laços, já era quase como se não existissem um para o outro. Mas, para além do ódio, havia conforto em saber que caminhavam sobre um chão comum e que poderia haver encruzilhadas.

quinta-feira

Quatro

O moço no fundo da sala, seria ele? É a mesma boca, o mesmo corte de cabelo.
E aquele outro, de costas, atravessando a rua? Não será ele? O mesmo jeito de se vestir, o mesmo tom da pele.
Se ela ligasse, ele atenderia? E, se não atendesse, seria para nunca mais?

quarta-feira

Três

Ainda o ódio. A casquinha arrancada à unha e a falta de tê-lo por perto latejando. Se eles tivessem brigado, talvez fosse mais fácil. Se tivessem ficado juntos até o amor aguar e tornar-se insosso, insípido e inodoro. Mas o amor não aguara coisa alguma, estavam ali ao alcance da memória o cheiro, o gosto e a textura da pele do outro. O fim não acontecera, a não ser que tinha acontecido.
Por enquanto, em seu saber ignorante, ele não morrera. A não ser que houvesse morrido.

terça-feira

Dois

Indecisa, não queria ligar ou escrever. Tanto tempo sem dar notícias, era estranho ligar para checar se estava bem. Se estava vivo.Também não ligava porque, naquele instante exato, o odiava intensamente: por seu silêncio, por sua ausência. Por não amá-la.

segunda-feira

Um

Não o via há alguns anos e a falta que ele fazia já tinha casquinha bem-feita, mesmo que nunca chegasse a cicatrizar de todo. Por isso, foi em sobressalto que sentiu, sem motivo ou explicação, aquele "ploct" por dentro. Fim de tarde, no meio da rua, cercada de uma porção de gente que ia e vinha, e o fio solto e vivo ricocheteando nos cantos dela. Ele estava morto, teve certeza. E tudo ficou árido e vazio.

sábado

Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.

(Mário Quintana)

sexta-feira

Seis

Mais um dia que começava, e ela resistindo a deixar a ansiedade dominar.
Depois do almoço, uma moqueca farta em coentro, pimenta e leite de coco fresco, deitou na cama e ficou em silêncio. Sem dormir.
Só deitada, sentindo o movimento da maré enchendo. Não sabia, mas pressentia. Aquele era o dia em que suas vidas iriam mudar.
Pensou no marido, em quanto o amava, se conseguiriam adaptar-se à vida nova. Pensou em sua mãe e em sua avó, e em suas tias e suas bisavós, e nas mulheres que - desde o início dos tempos - abrigavam tantos mistérios dentro de si e davam a luz somente ao mais óbvio e milagroso deles. Pensou tantas coisas e em nada, ao mesmo tempo, que até escutou o "ploct" de algum lugar dentro dela: a decisão do filho em se dar a conhecer; o estalo da represa começando a abrir; o ponto de virada do carrinho e o imenso vazio da montanha-russa abaixo. Sorriu, feliz. Inteira, mergulhada em medo e mel.

quinta-feira

Cinco

O agito do dia anterior lhe obrigara a dormir até mais tarde e tornara lento o andamento do dia. Dez anos entre o acordar e o ir dormir. Cem anos entre o café e o jantar. Mil anos entre o nascer do dia e o despertar da noite. Uma sabedoria ancestral lhe ensinava a aquietar-se.

quarta-feira

Quatro

Acordou com vontade de arrumar a casa. Mal terminou o café e começou: limpar os móveis, aspirar o chão, lavar as cortinas, consertar as variadas coisinhas adiadas, passar pano úmido. A barriga nem pesava enquanto ela punha tudo em ordem, abrindo espaço para aquele ou aquela que iria chegar. Em breve, sentiu.

terça-feira

Três

O calor intenso a deixava cansada. Tinha vontade de estar o tempo todo sem as roupas, deixando à mostra a imensidão da barriga e os peitos, sempre em mal contida explosão. A excitação da proximidade do momento-quando (mesmo que soubesse que ele podia demorar).
Os banhos eram uma salvação. A água fresca escorrendo, acompanhando os contornos de sua figura sem quinas.

segunda-feira

Dois

Já não atendia mais ao telefone. Não queria ouvir as insistentes perguntas sobre o fato de que o bebê não nascera. Ainda? perguntavam os amigos, surpresos. Como se ela estivesse ansiosa para deixar de estar grávida; como se carregar uma vida fosse um sacrifício mal suportado. Ela porém não tinha pressa - ouvia a sabedoria da falecida avó, amparando sua espera: "cada coisa a seu tempo". E, simples assim, confiava que chegaria a boa hora.

domingo

Um

Acordou de madrugada com os soluços do filho - a barriga pulando ritmada. Acarinhou a barriga e cantou, baixinho para não acordar o marido, suavemente acalmando o serzinho saltitante.
Fechou os olhos, feliz desse cuidado materno que, dado ao filho, também lhe confortava.

sábado

Zero

DPP. Data Provável de Parto. Essa era uma sigla que rapidamente se somara ao seu vocabulário, tão logo se descobriu grávida. A  DPP era calculada a partir da DUM - Data da Última Menstruação - e consistia em horizonte, do qual se aproximava na contagem das semanas, dos quilos ganhos e dos centímetros entre o pé da barriga e o umbigo. A DPP estava muito distante, mas de repente já era hoje; a data da carteira de gestante coincidindo com a do calendário. Quarenta semanas depois da alquimia donde lhe brotara o filho que agora se apertava dentro dela.

sexta-feira

Plotino dice: hay tres tiempos, y los tres son el presente. Uno es el presente actual, el momento en que hablo. Es decir, el momento en que hablé, porque ya ese momento pertenece al pasado. Y luego tenemos el otro, que es el presente del pasado, que se llama memoria. Y el otro, el presente del porvenir, que viene a ser lo que imaginan nuestra esperanza o nuestro miedo.
Jorge Luis Borges, "El Tiempo", 23 de junio de 1978.

quarta-feira

Três

Acordou antes mesmo que o sol aparecesse e resolveu cumprir a agenda.
Colocou na mala o roupão, a  toalha, a necessaire plena de cheiros e suavidades e foi nadar. A piscina verde e ondulando as braçadas dos outros nadadores.
Mergulhou. Era boa a sensação de estar mergulhada em si mesma. O único barulho era o da água, esparramando-se, e os dos braços em seu ir e vir contínuos.
Foi ao trabalho, almoçou  com colegas, sem nem mesmo contar a eles de tudo que recentemente lhe acontecera. Ela quase ia se esquecendo, como se - ao decidir continuar - a vida continuasse.
Às quatro da tarde o telefone tocou e era a amiga, zelosa, tateando seu humor, convidando-a para um jantar. Disse sim, abandonando-se à correnteza.
Em casa, o ritual do banho, os cabelos úmidos, os brincos e as sandálias. Até a campainha tocar. Sem pressa, caminhou até a sala e então abriu a porta para encontrar os olhos doces da amiga e deixar-se abraçar, cristal frágil, e chorar mansinho a dor da falta e a alegria do aconchego.
Acabadas as lágrimas, tomou a mão da amiga ao descer as escadas e suspirou alegre ao vê-la, ao tê-la perto, ali em pé ao lado do carro, gentilmente abrindo-lhe a porta.

terça-feira

Dois

Já passava das onze quando conseguiu abrir os olhos - ainda trincados de chorar. O primeiro pensamento consciente foi a lembrança de estar sozinha na cama. No apartamento. No mundo?
Era segunda-feira e ela se resguardava do mundo que corria lá fora. Um feriado só seu, marcando a ruptura com tudo o que veio antes; para protegê-la do olhar compungido dos outros.
Suspirou fundo até acordar o silêncio e só então se levantou. Lentamente, escovou os dentes, fez ovos mexidos, torradas quentes, suco de laranja, café com leite bem docinho. E também pão de queijo, resgatou as geléias, preparou salada de frutas. Sentou-se à mesa, ainda de camisola, ligou a música e ficou ali por horas, imaginando o que a vida seria dali por diante. Saboreando o doce-amargo do passado; antecipando o agridoce do futuro.

segunda-feira

Um

A porta tinha se fechado. Clanc, sem violência. Como ele fazia todos os dias, pela manhã, pronto para o trabalho de maleta pendurada e xícara de café na mão direita - equilibrista.
Mas hoje era domingo e sua saída, definitiva. Ele fora para não voltar. A porta, afinal, fechada, como antes as caixas e as malas e, antes ainda, as mãos e as bocas.
Tudo mudara tão lentamente que, quando notaram, a porta já estava fechada e o tempo de encontro se perdera. E então ele foi embora, para nunca mais, e ela ficou ali, para sempre. A dor fina e insistente dividindo o corpo ao meio enquanto trancava a porta. Sozinha, no apartamento enlutado. A solidão das coisas fadadas a ficar para trás.

sábado

Bocarra

but there are days in this life
when you see the teeth marks of time

(Interpol, "No I in threesome").

sexta-feira

Sete

Os santos encaram firmes os rostos transtornados de dor. Mas não julgam nada, em sua perfeição de santos. Reunidos, lamentamos a falta, choramos a dor, rememoramos a vida.
Pela primeira vez de preto, veste sobretudo soluços e crispação.
Retorna, ainda uma vez, à sua sala. Vazia.
E pensa como sete dias são ninharia em face de tudo o que foi: uma vida.

quinta-feira

Seis

Chás, cama e colo: receitas de convalescência. Litros de chá, quente e fumegante, servido na louça mais antiga e delicada. A cama, ninho de edredons, esconderijo e proteção. O colo, às vezes só faz ampliar a ausência. Em raras ocasiões, porém, é se aninhar pequena na palma das mãos de Deus.

quarta-feira

Cinco

Esquecida da sensação de pisar o chão. Ainda parada naquela sala, só faz escorrer por fora de tudo o que houve desde então, incapaz de virar o rosto, incapaz de quebrar o vidro.

terça-feira

Quatro

O sono é pesado demais. O estômago, pesado demais. Os ombros pesam toneladas. Há momentos em que os mortos são pesados por demais.

segunda-feira

Três

Acompanhou o cortejo, trôpega. Ressentimento do corpo, forçado a se mover devido à inclemência do relógio, insistente na marcação do compasso dos segundos, minutos e horas. Dos dias, pensou com susto e dor. Tanta dor que as pernas falharam um instante, enquanto ela atravessava o abismo.

domingo

Dois

Os olhos vermelhos e secos. O corpo moído em cadeiras, bancos de madeira, falta de sono. Ainda parada na sala, embora recebendo parentes, apoiando-se nos amigos. O céu indecente de azul, como se nunca mais fosse anoitecer, O sol explodindo o branco dentro dela, breve alívio de olhos cerrados.

sábado

Um

Amparou-se no sofá da sala, telefone na mão, boca ainda entreaberta. Sem gritar. Sem chorar. Permaneceu, apenas - assombrada e muda, a pata de elefante sobre o peito e a respiração difícil. Ficou ali. Por tanto tempo que pressentiu a eternidade.