quinta-feira

Trinta e dois

Mas e se o gosto de areia fosse apenas resquício da tempestade? E se o sumo da vida estivesse ali, escondido sob os espinhos, inacessível somente porque ela se esquecera como encontrá-lo?

quarta-feira

Trinta e um

Ficar não fora decisão. Ficar era o hábito do deserto - o gosto de areia estragando o sabor da vida polpuda e úmida.

terça-feira

Trinta

Lavou o rosto, acordando a noite insone. Olhou-se no espelho e o que viu foi: abismo. Na fundura dos olhos, no roxo das olheiras, no ressecado dos lábios. Odiou-se sem indulto - pelo persistente desejo de alegria, pela armadilha em que se deixara apanhar, pela impossibilidade de decidir.

segunda-feira

Vinte e nove

A luz insuportável do dia; o frio insuportável da noite. Por dentro dela, tudo ardia em chama alta. Doía. Crepitava. O calor ressecando a esperança até o ponto do estalo.

domingo

Vinte e oito

A coragem morreu no umbral da porta - a mala numa das mãos enquanto a outra se ancorava firme no batente. Olhou para trás, salgando o doce recém-redescoberto e estacou. Após o desejado sopro que parecia tê-la movido adiante, parada sem brisa nem motor. A sede dos náufragos abrindo feridas no que até há um segundo era umidade e mel.

sábado

Vinte e sete

Humana também, sentiu enquanto fechava as malas. Humana e sujeita a fracassos, decisões equivocadas e cegueiras.
Não importava agora: só importava partir.

sexta-feira

Vinte e seis

Todas as intensidades de volta, revolvendo terra e húmus dentro dela. Tão ampla. Viva, afinal.

quinta-feira

Vinte e cinco

A voz dele do outro lado da linha. Vivo, afinal. Desligou o telefone e chorou por horas - feito coco seco que de repente rachasse e minasse a água doce e rara. Vivo, afinal, repetiu. Como se de novo o encontrasse pela primeira vez - descoberta, repouso. Angelical proteção.

quarta-feira

Vinte e quatro

Respirou fundo, uma, duas, cem vezes. Não era a iminência da ligação a se completar que lhe pesava. Era a fragilidade da decisão que tomara. Tomara? Não sabia ao certo.
Tinha se cansado de carregar a morte por dentro. Mesmo a possibilidade de dor parecia melhor que a secura das últimas semanas.

terça-feira

Vinte e três

Era ela que arriscava ter morrido sem aviso? O deserto por dentro, a secura dos gestos e sentires, as fecundações difíceis e farpadas. A recusa da esperança na vida. A imobilidade mesmo em meio à tempestade. Ele podia estar morto, doeu-se, aflita. Então por que não ligava logo e acabava com a dúvida?

segunda-feira

Vinte e dois

Saber se estava morto ou vivo só fazia importância se ela decidisse. Se pusesse os pés nus na areia quente, se encontrasse coragem pra ir ao encontro do duvidoso oásis. Se rasgasse dentro de si umidade para iluminar os olhos.

domingo

Vinte e um

Porque vivo ou morto, ele era sempre miragem. Vivo ou morto, a distância parecia a mesma.
Mas isso era bobagem, ela sabia. Se ele estivesse morto, a distância era de responsabilidade da morte, do destino, do curso inelutável das coisas. Ou até de deus. Se ele estivesse morto, ela havia sido abandonada. Ela podia mesmo se revoltar.
Mas se estivesse vivo, a responsabilidade da distância era somente deles; era dela.

sábado

Vinte

Imaginá-lo morto inaugurara aquela tempestade de areia por dentro dela. Descobri-lo vivo não deveria dar início à calmaria? Não devia aliviar as ranhuras que ardiam e sangravam por todos os seus cantos?
Mas se descobri-lo vivo era encontrar o espelho d'água em meio ao deserto por onde caminhava, era também deparar-se com sua covardia. Era trocar a consciência da secura pela miragem da fonte.

sexta-feira

Dezenove

Se quando era a hora, as pernas haviam falhado, por que agora seria possível fazer avançar o passo? Se ele estivesse morto realmente, de que valeria caminhar em sua direção? De que adiantaria ligar? De que adiantaria saber como ou quando?

quinta-feira

Dezoito

Por dentro, tudo é aridez e aspereza.Como se a água entalasse na garganta e aumentasse a sede que devia aplacar. Ou a sede é que é de outra coisa e não pode nunca ser amansada.